Já
era outono novamente. Passaram-se cinco (ou seis?) estações de declínio das folhas,
desde sua última grande publicação. Não a mais importante, nem a mais aclamada,
mas aquela que parecia ter posto um ponto final em tudo. Depois que se decidira
a não escrever nem uma “vírgula” que não considerasse como sendo de uma “intelectualidade
admirável” ou quiçá fruto de uma raríssima inspiração, Antônio se transformara
em terra árida para novas produções literárias. Experimentava, com angústia,
uma fase nebulosa em sua carreira de escritor, a ponto de achar que passava por
um período – interminável - de castigo ou
provação. Por mais que tentasse entender, não compreendia onde fora parar toda
a sua criatividade.
Com olhar e pensamento cansados - embora muito investigativos - Antônio
campeava algum assunto que pudesse ser realmente interessante ou, que pelo
menos, principiasse uma boa narrativa. Algo que posteriormente se transformasse,
de forma natural, em um grande sucesso aos olhos de seus leitores.
Naquele
dia, como de costume, Antônio buscava esse momento mágico atravessando os
vidros embaçados das janelas, rumo aos horizontes largos que não denunciavam –
muito ao contrário disso - os limites e fronteiras de sua imponente estância,
no interior do Rio Grande. Também, como de costume, acabara perdido em suas
ideias e pensamentos, se perguntando porque diabos havia comprado uma
propriedade tão grande. Possuía mais ou
menos umas trinta quadras de campo, com pelo menos uma dezena de prédios
erguidos, entre casas e galpões. Essa
estrutura gigantesca tornou-se um grande problema, já que a velha “Estância
Querência” não vivia mais seus tempos áureos. Por não ser mais tão produtiva
como antigamente, os ganhos com o escritório e com seus livros, acabavam sendo
utilizados em sua quase totalidade para única e exclusivamente socorrê-lo de
sua completa inaptidão para os negócios rurais. E isso, obviamente, o
atormentava.
Certamente,
as coisas pioraram muito depois que seu “quase irmão” Genoíno, capataz e
gerente, partiu desta pra uma melhor. O negro velho tomou uma rodada num zaino de
sua própria doma. Coisa bem triste. Até hoje, ninguém sabe ao certo o que
aconteceu. O fato, é que o corpo do gaúcho foi encontrado estendido em meio ao
varzedo, num dos potreiros dos fundos. De certo, somente o tombo e o peso da
morte rondando nas “casa”. Há quem diga que o destino do pobre homem foi selado
num bote mal sucedido de cruzeira. Mas vai saber...
Depois
do ocorrido, Antônio achou por bem vender o zaino, pois jamais conseguiria
perdoar o animal que havia roubado a vida de seu melhor amigo... ainda que por
acidente! Uma lástima... que pintura de flete!
Não,
senhor... a estância não era a mesma. Antônio conseguira realizar o antigo
sonho de seu pai, ao adquirir a propriedade. Porém, o velho Laurenciano faleceu
bem antes disso. Antes até mesmo de se reconciliarem, pois o velho nunca
aceitara a sua decisão de se tornar advogado. Sequer chegou a ver o filho fazer
sucesso como escritor. Queria o único herdeiro cuidando dos negócios da
família, que se resumiam a um pedacinho de terra, passado de geração para
geração e lindeiro à tão sonhada “Estância Querência”.
Sempre
que pensava nisso, Antônio sentia um misto de orgulho e de culpa, ao lembrar
que o sonho do pai em adquirir os campos do vizinho era algo meio platônico. Em
verdade, tinha quase que certeza de que o sempre rígido Laurenciano jamais
pensara seriamente que algum dia pudesse realmente pisar naqueles campos como
dono. Muito menos por intermédio de um filho que praticamente fugira das lidas
de campo, do seio familiar, a fim de obter sucesso financeiro e prestígio, a
todo custo. Por mais que tenha lutado, com o exercício da advocacia não
conseguira dar os campos de presente a seu pai. Um desejo que, aliás, manteve
sempre em segredo. Seu período de prosperidade somente aconteceu com o sucesso
inesperado de seu primeiro livro, o que fez com que outros mais também vendessem
muito. Contudo, em seu íntimo, Antônio saiba que a cada novo lançamento, um
pouco de qualidade se perdia pelos caminhos... talvez entre a pressa da editora
e a necessidade e urgência de provar seu talento . Tudo isso, permeado por
algumas mudanças drásticas em sua vida.
Com
o declínio de seu sucesso, acabou por ficar sozinho. Divorciou-se da mulher, o
que lhe custou metade de tudo o que tinha. Por sorte, à época, tinha muito. Por
sorte, não... por talento, mesmo. Mas e daí?
O único
filho trilhou caminho semelhante ao seu: deixou a família e foi para a cidade
grande (Rio de Janeiro), estudar e tentar êxito na carreira de ator. “Como o
destino é traiçoeiro e irônico”, pensava Antônio, cada vez mais imerso nos
desencontros de sua trajetória do que na tentativa de cunhar um novo livro. Mal
via Renato... de vez em quando, recebia um telefonema ou mensagem, solicitando
aquilo que o filho chamava de “suporte”, para poder deslanchar na profissão.
Certamente, o apartamento, o carro do ano e a mesada mensal não eram
suficientes para realização do projeto que o guri tinha em mente.
“Às
vezes a vida é torturante”, pensava, entediado com tudo... e com todos.
Precisava de um novo livro. Um único livro mais e conseguiria
descansar com a certeza de que teria recursos suficientes para manter-se até o
fim de seus dias, deixando ainda uma boa estrutura para o filho “artista”.
Apenas mais um livro para garantir a plena sobrevivência da “Querência”.
Não
há vida após a morte... se houvesse, depois de quase dez anos seu pai já teria
voltado para reclamar de algo... e sua mãe, que morrera há mais de vinte,
certamente estaria ao seu lado, lhe confortando dos tantos descaminhos
percorridos.
“Às vezes a vida é o fim e só”, resmungava baixinho...
Certamente, muitos de seus pensamentos serviriam de farto
sustento a um poeta. Mas Antônio não tinha esse dom. Adorava poesia, mas as
rimas, as metáforas, as utopias e tudo o mais, não combinavam com sua maneira mais
lógica e objetiva de escrever. Era um escritor, sorvendo o próprio ocaso.
Em algum momento, não muito distante, chegaria o Natal...
Ao lembrar-se disso, uma lágrima correu na face, pelos
tantos natais que desejou comemorar em família, com sorrisos fartos, abraços
apertados e churrasco gordo para indeléveis confraternizações, mas que por
algum motivo, nunca teve.
Sim... algo se perdeu pelas estradas. E não foi somente a
criatividade. Algo mais profundo deixou de acontecer, algo mais intenso deixou
de ser vivido.
Via o tempo lhe chamar pela vidraça, rumo aos campos de
outros dias...
O vento, um minuano eterno, soprava, como a querer embalar
a alma, amenizando agruras, oferecendo alento.
Não havia mais tempo para seu filho. Nem mais um telefone!
A velha “Estância Querência” lhe abrigava o corpo pela última vez.
Um último suspiro, uma última transpiração... uma tomada de
fôlego, para respirar o aroma silvestre da campanha pela derradeira vez...
Sem ano-novo, sem novo livro... sem velha vida!
Uma outra lágrima, pelo prenúncio dos avisos em placas e
jornais, indicando um número de telefone no Rio de Janeiro, que serviria de
contato para realização da venda da sua “Querência”...
Nenhum abraço de pai, sem aconchegos de mãe. Sem
reconciliações. Simplesmente partir, encerrando sua própria história, sua
literatura real, sem direito a opinar ou intervir no fim.
De mágico mesmo, somente um velho moinho, que de há muito
não girava... e girou!
O minuano soprou, se intrometendo por frestas e,
curiosamente, folhando as páginas do primeiro livro de Antônio, que
encontrava-se aberto sobre a mesa, onde tudo começou.
Talvez por maldade, tenha folhado até a última página, onde
podia-se ler, em letras destacadas, o seguinte dizer: O FIM!